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ÁFRICA, 3º MILÊNIO *

Por Ademir Barros dos Santos ** Secas tetas, murchas, desabam sobre esquálidas bocas que não as sugam: não há forças para sugar; não há nada o que sugar. Mal ajambradas estátuas vivas, em duvidoso equilíbrio de ossos deformados, inacreditavelmente empilhados e acobertados por couro sujo e gasto, encimadas por olhos cobertos de espanto, tristes, remelentos, que já não produzem lágrimas, porque lhes faltam água e coragem para chorar. Pés tortos, descalços, escalavrados, deixando marcas sobre um chão estranho, que machucam um Saara em cada passo, pois carregam um Kalahari em cada pé. Almas secas de tudo; destinos vazios de tudo, porque cheios de coisa alguma. Olhos desproporcionalmente grandes, inexpressivos, que nada fixam, exceto um inútil e gasto desespero nu. Multidões de solitários zumbis que caminham, teimosa e mecanicamente, sem qualquer destino, sem qualquer esperança, pedindo a misericordiosa morte que, maldosa, negaceia e, mesmo intensamente desejada, se apresenta cínica; mas, não vem. Corpos enegrecidos, acinzentados, mutilados, incrivelmente recobertos por imundícies várias, espalham seus inúteis couros mortos, encarnicidos, à beira de estradas desconhecidas; cadáveres; meros cadáveres mesmo enquanto ainda vivos, dos quais hienas e abutres recusam a aproximação, para não sujar os agressivos focinhos, ou os aduncos bicos. Meros androides; humanoides mortos, decompostos por caminhos inúteis, que não levam a lugar algum. Estranhos soldados, comandados por ridículos Hitlers modernos, reificados em uniformes rotos, possuindo, de si, apenas estranhas extensões metálicas em seus rudes braços tortos, portam mortes encomendadas e treinam seu poder, que agora tem, por limite único, o alcance de balas assassinas, capazes de atingir qualquer desvão por onde qualquer estranho, cujo imperdoável crime de pertencer a outra etnia, possa se esconder. Bizarro quadro, negro, este, onde se rabisca e borra esta estranha história, não incluída no terrível inferno de Dante, por muito desumana; história que não foi sequer imaginada, nos mais profundos devaneios, por nenhum Maquiavel; ou inspirada nos loucos sonhos que povoaram a mente doentia do Marquês de Sade… Não é ficção: este horror, este bizarro quadro, negro, é a realidade que a mídia espalha sobre a África, ainda hoje. África do segundo milênio, atirada displicente e impunemente à lata de lixo da História, pois dela nada mais restou que resíduos já sugados, imprestáveis, secos e inadequados a qualquer processo de reciclagem, quer humano, quer social. África, doente e à morte, que em nada se parece com aquela pujante e mesma África que abrigou o Egito, fonte primeira da civilização humana. África que acolheu, em seu seio farto, setenta famintos membros da família que, ali, se transformou no povo hebraico, que mudou o curso da História, pois gerou a civilização judaico-cristã em que o Ocidente vive, hoje. África do mesmo Egito que deu ao Cristo recém-nascido não só o seguro manto com que se protegeu da morte encomendada por Herodes, mas, ainda, o Simão que lhe carregou a cruz da última caminhada… Pela África, por certo Cristo chora. Um choro intenso, iniciado em 1444, quando Portugal, alçado por conta própria a dono do mundo, sacou do Senegal pouco mais que duzentos africanos, inaugurando a nefasta e nova escravidão de caça e coleta que, indústria extrativa de vidas, animaliza e despersonaliza seres humanos. O triste simulacro de continente que a mídia ainda vê nos dias atuais, em nada se parece com a África do reino de Meroe e da cidade de Axum, que, do quarto ao nono século de nossa era, dominaram o controle sobre o Índico e todo o comércio com o Oriente. Nada mais ali nos lembra os Estados do Cinturão Sudanês, criadores de povos por onde desfilaram reis do ouro; ou o poderio de Kahina, a rainha que se opôs, na Tunísia, ao avanço do então nascente império muçulmano. Também nem de longe se vislumbra a pujança dos impérios mouros surgidos em seu Norte que, já a partir de 711 d.C., pelas mãos de berberes comandados por Tarik, dominaram, por mais de sete séculos, a Península Ibérica, fazendo ali surgir a Espanha das Três Religiões. Este continente, que hoje se vê pela TV, em nada se assemelha àquele do qual dependiam as economias do Oriente Médio muçulmano por volta de 1.250 d.C., e de onde, um século depois, provinham dois terços do ouro mundial. Quem, vendo só tristeza e morte, bala e fome, lembraria que dali partiu Mansa Musa, rei do Mali, carregando tanto ouro em visita a Meca, que desvalorizou a moeda egípcia? Ou de Sonny Ali, rei de Gana? Ou de Sundiata Keita, eterno mito malinês? Por onde andarão os reis iorubás, logo reduzidos a nada além de meros alvos de caça predatória, a quem, nesta guerra insana, só restou possível salvar seus deuses, hoje os sagrados orixás? Atualmente, quem diria que já invadida, a África ainda produziria povos tão notáveis em Oyó, Benin e Akan, fontes de nossa própria cultura, transplantada para o Novo Mundo pela via da escravidão? Ou ainda que, pela costa oriental, a civilização swahili já se encontrava no centro do complexo comercial do Oceano Índico, e que Kilwa Kisiwani prosperara como entreposto do ouro do Zimbábwe, o Grande Zimbábwe, ainda hoje majestoso, misterioso e estranho aos olhos do mais persistente dos pesquisadores? África: seu futuro e sua história foram rasgados pela sanha da Europa voraz, que lhe contaminou com a ganância, esta peste social, pura lepra da mais voraz estirpe, que se alastrou rapidamente, e para a qual não há, ainda, qualquer preocupação quanto à cura ou tratamento. Lepra esta que se espalhou, até ferir de morte todo o corpo do indefeso continente negro quando, em 1885, dominada toda a Europa pela sede de poder, riscou-se a faca e bala as cicatrizes que formatam as indesejadas fronteiras que lhe foram impostas e marcadas a pólvora, chibata e cárcere, no dominado couro do atônito africano vitimado. Pois, que são suas fronteiras? Nada mais que atestados da violência, que riscou tais cicatrizes em seu rico território; provas indeléveis da ganância de poder europeu, enquanto lhe foi possível exercer seu insano anseio de dominação incontrolada. Certamente Cristo chorou ao ver seu manto acobertar a sanha insana dos Cruzados, pretensos destruidores da cultura moura que, parida no entorno do Mediterrâneo, tornou-se protetora da convivência entre cristãos, judeus e muçulmanos, gerando a pujante Espanha das Três Religiões, guardiã da cultura na Idade Média, onde floresceram gênios da filosofia, tais como Avicena e Maimônides, e de quem descende, certamente, o pensamento de Spinoza… Cristo chorou mais ainda, sim, ao ver seu roto manto, após esgarçado por ingleses, portugueses, franceses, alemães, belgas, tantos outros mais, ser usado, aos pedaços, para encobrir descaradamente o ainda hoje impune genocídio africano, escondido sob seu Sagrado Nome. Mas, a lepra europeia não matou a África: já se notam, fortes, seus sinais de vida. Já se ouviu, troante, o suspiro viril de Steve Biko, calado a bala. Já se viu, aberto, o abraço de Patrice Lumumba, fechado a bala; já as missas de Desmond Tutu reconduziram ao Cristo Verdadeiro, alguns dos poucos daqueles que indevidamente o utilizaram, e ainda ecoa firme o passo de Mandela, repisando e reafirmando a igualdade. Por vezes ainda se vê, é certo, o exército de zumbis vagando por seus campos, savanas e estepes, ou rodeando o Chifre da África, sem destino, sem terra, sem teto, sem futuro, sem esperança; sem nada! Também se vê a grande Abissínia, descendente dileta de Salomão através de Menelik por conta e obra da rainha de Sabá, perdido todo o esplendor que dali tanto iluminou a Antiguidade e a Idade Média, transformar-se, agora, na instável Etiópia, que se esbate em intermitente guerra fratricida com a também instável Eritreia. É certo que Cristo chora, ainda; mas, infelizmente, já não chora só: consigo também chora Maomé, ao ver-se tão esquartejado em outras tantas mesmas crenças que, por outros modos, apresentam novas intolerâncias e novos e mais cruéis radicalismos, que ainda sacrificam, e escravizam, e sequestram, e mutilam, não só homens, mas também e principalmente, indefesas mulheres e meninas, pelo simples crime de tentarem transformar-se em meras donas de seus míseros destinos. Por isto, Cristo ainda chora; mas, já agora Maomé também chora, ao se perceber tão mal compreendido. Porém, já Ruanda não odeia Uganda, que não odeia mais Ruanda; hutus já não matam tutsi, que se realinham com os hutus; povos bantu desfraldam seu orgulho bantu, reavivando a cultura bantu. Por isso lá estão, firmes, os sinais de convalescença, desde o início do 3º milênio: lá estão ainda, é certo, as feridas e sequelas que mais de quinhentos anos de exploração, de colheita desregrada de tudo o que ali havia – gente, riquezas e terras – deixaram; mas já, neste 3º milênio, a África convalesce: Moçambique, Nigéria, Angola, tantos mais, não morreram à míngua! E não morrerão; jamais! Isto porque começa, a África, a acordar da letargia que lhe foi imposta a bala, sob o jugo da chibata: a Nigéria é rica e capaz; a África do Sul soltou seu grito forte ao clamar por liberdade, grito este que, por tanto tempo preso, ecoou por todo o continente e ressoou pujante, por todo o mundo. A cultura já renasce, e sua música embala o planeta, ressoando não só a partir da África, mas, também, de toda a Diáspora; eis que a África cresce a taxas imensuravelmente maiores que as de seus antigos opressores, e Ruanda, de tão triste genocídio, tem sua população majoritariamente feminina refletida em seu parlamento, que é liderado por uma delas, além de apresentar-se como cobiçado destino turístico, centro de desenvolvimento de tecnologias, com crescimento anual, consistente, acima de 6% ao ano; isto, há mais de cinco anos! Esta a África do 3º milênio: derrubada a cada desastre, insiste em renascer a cada instante! África do 3º milênio: reserva persistente que resiste à depredação material causada pela ganância do ser humano; derradeira guardiã da qualidade e do futuro da espécie que a desmonta e a destrói, porque é certo que a África, sempre forte, mesmo doente e ferida de morte, não morrerá. Não morrerá porque suas sementes de vida se espalham e se tornam imortais, porque plantadas, guardadas, reservadas e preservadas dentro de nós, seus filhos que, espalhados por toda a Diáspora, incansável e constantemente reproduzimos novas Áfricas a todo instante, em todos os cantos por onde nos espalharam; e por onde frutificamos. Porque é assim que nós, seus filhos, desta Diáspora olhamos, atentos, para a mãe doente, mas convalescente, e a reproduzimos por todos os caminhos por onde transitamos. Por isso a África não morre: porque, a ela, a morte é impossível. Impossível porque nada é maior que a África que sobrevive em nós, onde seus ecos de vida, contínua e compassadamente como os sons de nossos tambores, replicam o ritmo de nossos corações, alimentando nossa alma, que só por ela pulsa. Pois que pulsa, e pulsa, cada vez mais profundamente, se eternizando dentro de nós!

* texto publicado em livreto, sob o título “África – 2º milênio”, pela Universidade de Sorocaba – Uniso, em 2000; revisto, ampliado e renomeado para esta publicação.

** Doutorando e mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos; coordenador da Câmara de Preservação Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab – da Universidade de Sorocaba – Uniso.

Ademir Barros dos Santos

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