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O VODU E O HAITI

Por Onildo de Deus Aguiar[1]

No começo, o Haiti é habitado por indígenas aruaques, ou taianos; com a chegada de Cristóvão Colombo e outros colonizadores, principalmente franceses, houve a tentativa, frustrada, de escravizar os nativos que, não resistindo ao trabalho forçado, às punições impostas e às doenças trazidas pelo colonizador europeu, foram quase totalmente extintos.

Diante disso, foram trazidos negros africanos para o trabalho escravo, principalmente vindos das áreas onde hoje estão o Benin - antigo Daomé – e o Congo. Como destino, áreas chamadas Grande Haiti, possessão francesa, e Santo Domingo, área muito menor, então espanhola.

Ali, no final do séc. XVIII, houve a revolta contra a escravidão; isto, no momento imediato após a Revolução Francesa, o que induziu pessoas com Vicente Agé, que se uniu a Toussaint L´Ouverture a ao intelectual haitiano Jean-Jacques Dessalines que, como mentores, levaram o povo haitiano a, primeiro, expulsar os espanhóis de Santo Domingo e, logo após, os franceses do Grande Haiti; isso, em 1º de janeiro de 1804[i].

Porém, a França conseguiu que a Europa não reconhecesse a independência do Haiti: na verdade, eles temiam que os negros, tanto na África quanto nos Estados Unidos e na América Latina, principalmente no Brasil, Caribe, Jamaica, etc., pudessem tomar o mesmo exemplo dos haitianos, revoltando-se.

Foram tentadas, por várias vezes, novas invasões ao novo país, o primeiro e único país negro a conseguir sua independência por suas próprias forças; isto, apesar de haver alguns historiadores que defendem que alguns poucos forasteiros brancos, muitos sem grande pretensão política, além de milícias mercenárias, teriam lutado ao lado dos haitianos.

Porém, não tendo sido bem-sucedida nenhuma invasão à ilha, principalmente pelos franceses, foi por estes imposta, ao Haiti, uma pesada indenização a ser paga pela “perda” sofrida pelos franceses; o que é a mesma coisa que a vítima de roubo ter que pagar indenização ao ladrão, pela culpa de ter sido roubada.

A indenização foi aceita pelos haitianos, como forma de encerrar, de vez, os enfrentamentos e a possível volta de confrontos, mortes e guerra.

Muitos anos depois, a ilha foi invadida pelos Estados Unidos; isso em 1915; os norte-americanos criaram, com sua visão capitalista, uma série de corruptos, o que mudou, totalmente, os conceitos e rumos da recém-criada nação.

O Vodu

O vodu é a religião de matriz africana mais perseguida do mundo: geralmente é associada ao súbito mal, o mal total, feitiçaria, sendo vista como religião inimiga dos bons costumes e do cristianismo. É uma perseguição de forma temática, claramente associada à pobreza e à tragédia do povo haitiano.

Tanto no entretenimento ficcional quanto nos verbetes, vem associado à animosidade, a sangue, vivos-mortos, bonecos espetados, desenhos satanizados, bruxaria, ou seja: ao mal plural.

Morto-vivo assustando pessoas e magia negra são temas e termos recorrentes, de forma que, no filme Boneco Assassino, por exemplo, na hora da possessão, o assassino ao transferir sua alma ao boneco, faz um “yanvalou”, um ritual em nome de Dambalah, deus maior do vodu.

Mentira e folclore: tudo isso é mais um mito hollywoodiano, com interesse em desmoralizar uma religião que foi e sempre será muito importante para a organização do trabalho familiar, da política e da cultura do povo haitiano.

Para as religiões de matriz africana, convive-se, concomitantemente com o bom e o ruim, mais do que com bem e o mal; isto, a todo momento.

Quanto à feitiçaria, pode-se traduzir como “encantamento”: tudo depende do viés, do poder da natureza, que é imprevisível e, por isso, mágico, no momento da ação de cada divindade consagrada. É, sempre, mais um grau de experiência o ser humano submetido ao bem e ao mal. Porém, nada absoluto. Sem dilemas, sem penúria, sem culpa, sem pecado. Nem condenação eterna.

Origens

A religião do vodu tem suas bases originais na religião daomeana[ii], no culto jêje, de onde os voduns, e do Congo.

O vodu, assim como todas as religiões de matriz africana, tem suas divindades correspondentes ou espíritos ou anjos: são os LOAS, comparáveis aos orixás ou inkisses.

Os praticantes do culto, ou vodusians, são possuídos por estes, como na maioria das religiões de matriz africana.

Assim como nas demais religiões, a morte não é o fim de tudo: os seguidores do culto creem na volta mágica da alma à África mitológica, que se localiza no outro lado do oceano e que se conecta ao Haiti: é o “Nan Gimen” (mítica); essa conexão é feita através do Poto Mitran um altar fixado no centro do hounfô, sendo este o templo vodu.

É no Poto Mitran que são assentadas as oferendas, e é em sua volta que se dança, chamando os loas para compartilhar do evento, e para a incorporação.

No hounfô, apenas o “hougan” e a “mambo”[iii] dirigem os trabalhos e conduzem os rituais de oferendas, que podem ser aves, caprinos, bovinos, etc.

Só o hougan pode recitar, enquanto só as mambo podem ser possuídas, incorporando os loas.

Os mitos e os loas

Segundo o mito, um “Gran Mett” criou o mundo, e o entregou aos loas para cuidar do desígnio dos cantos do mundo; quanto aos loas, podem ser de duas origens: vindos da África, ou créoles[iv], que são os nascidos no Haiti.

Alguns desses loas são de expressão extremamente religiosa, como o Rada e Nagô; outros, têm dimensão mágica mais esotérica, como Kongo e Petro.

Entre eles, destaca-se Legba, que também é cultuado na santería cubana: ele abre caminhos, traz informações e é muito associado a Exu.

Outro entre os principais é Dambalah, o loa maior, que representa a pureza e a sabedoria da serpente, e o arco-íris; no culto dos voduns, entre os fons e os jêge entre outros, existe o culto à serpente chamada Dan; assim também no Tambor de Mina do Maranhão; Dan significa vida, em idioma Fon.

Outro importante loa é Ogu Ferre, claramente associado a Ogum, o deus do ferro no culto yorubá; no vodu, este loa é representado, muitas vezes, por um mulato armado com espada, montado num cavalo branco, como São Jorge. Há grande variedade de Ogu, vindos da África, sem armadura.

Há que se mencionar, ainda, Ezili Dantor - Loa Negra, ligada ao amor fraterno e materno, tem muitos filhos; seu mundo é a terra, o solo, o que a associa a Nanã, no candomblé.

Já Ezili Freda é uma loa feminina, representada por uma mulata com aspiração a riqueza, e seu mundo é a água, como Oxum, e os ventos o que a associa a Iansã; ela é o útero do mundo cósmico.

Quanto a Gede, representa tanto o espírito da morte quanto a energia sexual e o renascimento, enquanto Azaka comanda agricultura.

Há, ainda, a qualidade dos marassás, que não são loas: são espíritos que aparecem na festa no hounfó, trabalham para seres da natureza, e só querem se divertir assim como os gêmeos Ibeji das religiões dos Orixás.

Elementos do culto

Poto Mitran é um tronco alto, em forma de poste, que é plantado no chão e vai até o teto do templo, servindo como caminha para a viagem e a chegada dos loas.

Vevés são desenhos formados por riscos místicos postos próximos do Poto Mitran, assim como os pontos riscados da Umbanda.

Quanto aos instrumentos são utilizados os tambores Rodo, Boulo, Median, tocados com baquetas; há, ainda, o tambor maior, o Nannan, tocado com a mão e uma baqueta, além dos chocalhos tcha tcha.

Todos os instrumentos são tocados por vodusians escolhidos pelo Hougan e pela Mambo.

Quanto aos cantos, denominados “yanvalou”, nome que, em créole do Haiti, significa súplica, são as rezas ou invocações, chamados todos em transe e podem ter diversas formas; mais agitados, ou mais calmos; os para Dambalah, por exemplo, são calmos, respeitosos, parados, quase declamados.

Essas invocações podem ser cantadas em fon, mahi, yorubá ou, mais genericamente, em créole[v], que é o idioma corrente local.

Como prática, não é raro, na atualidade, encontrar-se, nas residências, altares vodu contendo imagens de santos católicos, assim como acontece na umbanda.

A crença

No vodu, assim como em diversas outras religiões, crê-se que as pessoas são compostas por corpo e alma: o corpo se decompõe após a morte, mas a alma, sendo pura energia, se torna como que uma estrela (“Z´étoile”); toda a alma tem dois espíritos, que protegem a pessoa para que ela entre no cosmo.

Cerimônias principais

Na iniciação, tanto o hougan quanto a mambo atuam: enquanto o hougan provoca a evocação, a mambo entra em transe e os dois, diante de uma bacia virgem cheia de água, procuram identificar o loa que ali se manifestará, para que se conheça protetor do novo discípulo.

Na cerimônia fúnebre, o hougan precisa, por meio do loa, fazer o morto tomar o caminho do muno divino onde está a África imaginária: para tanto, é borrifada água ardente sobre o cadáver, nos quatro cantos.

Alguns ritos são usados para facilitar a ida ao plano cósmico: para que a alma não se encante com o espírito do mal, uma jarra é queimada, quebrada e jogada nas encruzilhadas.

Muitas formas são usadas para evitar a intervenção do mal nessa viagem, o que dependendo, inclusive, da forma e das condições em que ocorreu a morte.


As oferendas

Assim como em todos os cultos afro, os animais oferecidos, que podem ser bezerros, aves, etc., têm que vir de excelente de boa procedência, e estar em excelente estado de aparência e saúde, sem nenhum defeito sequer.

Prepara-se a oferenda sem derramamento de sangue, e em ritual que exige cantos de saudação ao loa agraciado.

Por exigência deste, as melhores partes lhe são oferecidas: as vísceras, os genitais, e outras partes consideradas depositárias do poder do sagrado. O sangue é a parte mais importante, sendo coletado em uma tigela colocada junto ao Poto Mitran.

Disseminação da fé

Apesar da população haitiana se autodeclarar 85% católica e 15% protestante, é possível aceitar que 100% dessa população acredita nos espíritos.

Isto, assim também acontece com boa parte da sociedade africana malinke, da África ocidental: eles se declaram muçulmanos, porém, no âmbito familiar, preservam seus tambores e a história e refltem sua ancestralidade na Mesquita, socialmente tratada e entendida como um local da família mística estendida.

O Vodu e a Revolução

A Revolução dos escravos haitianos começou em 1791 e terminou em 1801, sendo que três anos depois, em 1804, o Haiti conseguiu sua independência perante a França.

Note-se que essa revolução começou com uma cerimônia vodu, onde os presentes, depois de tomarem o sangue da oferenda, se comprometeram a travar guerra contra a condição desumana dos escravos componentes do povo haitiano.

Assim se iniciou a conscientização desse povo quanto à sua condição, o que a levou a lutar pela liberdade até a morte.

O filósofo haitiano Jean Price-Mars, certa vez escreveu que a revolução haitiana “est issue du voudou” (a independência haitiana deve-se à crença no vodu).

Note-se que, entre os colonizadores, havia o consenso que o vodu não seria capaz de proteger os haitianos da escravidão, mas havia a certeza que ele poderia lhes fazer mal.

A arte haitiana e sua influência intelectual

Durante os anos 40/50, intelectuais e artistas atraídos pela arte cósmica e surrealista haitiana, entre eles Aimé Cèsaire, assim como o escritor surrealista André Breton e outros, quer do Caribe, quer da Europa, estiveram na ilha para se inspirar na nobreza da arte religiosa haitiana, embora sem se preocupar com a pobreza material da ilha, o que pode ser notado na arte publicada sobre a produção destes autores.

Referências

LOPES, Nei, Kitabu. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2005.

SMITH, Patrick Bellegarde; MICHEL, Claudine. Vodou Haitiano: espírito, mito, realidade. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

RAFA. Folclore du Haiti. Capital Records (CD).

Drum of Hatian Hipi. Capital Records (CD).

CARRION, Dirce. Haiti, Vida e Arte. Catálogo da Secretaria Municipal da Promoção e Igualdade Racial de São Paulo, 2015.

ARAÚJO, Emanoel. O Haiti está vivo lá. Catálogo. Composto em Zurich Stimate. São Paulo, setembro, 2010.

[1] Escritor, poeta, contista, musicólogo, tenaz pesquisador de negritudes e africanidades. Coordenador da Câmara de Culturas Africanas do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab – da Universidade de Sorocaba – Uniso. [i] A revolução teve início em 1791, e foi encerrada, com vitória dos revoltosos, em 1801; três anos depois – portanto, em 1804 – o Haiti viu sua independência reconhecida pela França. [ii] Hoje, Benin. [iii] Correspondentes ao babalorixá e à yalorixá, no candomblé. [iv] Para o candomblé, esses nossos ancestrais nascidos fora da África, são chamados catiços. [v] “créole”, genericamente, significa aquilo que tem uma origem, mas adquire características locais quando transportado para outra cultura; no caso presente, trata-se no idioma corrente haitiano, que é a adaptação do francês para o falar corrente local.

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