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O HIP-HOP E A RECONFIGURAÇÃO DA NEGRITUDE EM SÃO PAULO

Por Jaqueline Lima Santos. Escritos retirados da pesquisa O HIP-HOP E A RECONFIGURAÇÃO DA NEGRITUDE EM SÃO PAULO: A INFLUÊNCIA DOS MOVIMENTOS POLÍTICOS E MUSICAIS AFRO-AMERICANOS NO SÉCULO XX1.


INTRODUÇÃO

O Brasil tem a segunda maior população negra no mundo, depois da Nigéria – 96.797.094, de acordo com o censo do IBGE de 2010, em outras palavras, 50,7% da população. No entanto, não muito diferente de outros países do continente americano, este grupo, como consequência da escravidão, sobreviveu apesar do racismo, exclusão e pobreza enquanto teve que lutar por melhores condições de vida. Neste contexto, expressões da cultura africana têm sido um instrumento político importante para recuperar a dignidade humana e a identidade negra.


O movimento transnacional da “Música Negra Americana”, por exemplo, Soul, Funk, Jazz, Rap, R & B, Hip-Hop, etc. teve um grande efeito na Diáspora. De acordo com Paul Gilroy (1993), as gravações em discos de vinil de black music, são os meios de troca de informação estabelecidos na Diáspora Africana, e têm sido usados para conectar pessoas que dividem raízes e experiências históricas em comum. Esta crítica cultural argumenta que o Triângulo Atlântico (Américas e Caribe, Europa e África) que formaram a Diáspora Africana, mobilizaram lutas e promoveram uma troca mútua de imagens e símbolos. Este fenômeno permitiu a circulação de personalidades negras, livros, folhetins e jornais e demonstrou o poder transnacional da black music que excedeu os limites do estado nacional. As gravações e covers de disco foram usados para disseminar questões experienciadas pela população negra e permitiu o compartilhamento de estilos e símbolos que compuseram as ideologias da Negritude. Em adição, a música facilita a circulação de ideias relevantes para o prazer e o desejo, que é um importante elemento político que excede o impacto comercial.


O Hip-Hop brasileiro nos permite falar sobre diferentes temáticas como gênero, raça, classe, educação, agência, identidade e assim por diante. Meu foco neste ensaio é a história do Hip-Hop brasileiro e explicar quando, como e porquê este movimento chegou neste país e ganhou tamanha importância. Para isso, primeiramente é necessário falar sobre o cenário que precede o florescimento desta cultura no Brasil.


Analiso a influência cultural do Hip-Hop americano entre a juventude negra em São Paulo do final dos anos 70 até o início dos anos 90. Este foi um importante período no Brasil, considerando a forma como a ideologia negra estava mudando. Assim, quando nos referimos ao Movimento Negro brasileiro e à identidade negra brasileira, precisamos examinar a história Afro-Brasileira e ideologias como “racismo” e “democracia racial” que ganharam importância na ideologia/no pensamento nacional.


Inicialmente, eu apresento as ideias fundamentais a respeito das relações raciais no Brasil. Eu também destaco a exclusão estrutural em Nova York e em São Paulo, demonstrando como esse fenômeno influenciou as origens do Hip-Hop e se desenvolveu nas duas cidades. Por fim, apresento os primórdios do Hip-Hop e o impacto deste movimento entre os negros e os pobres no Brasil.


2. O Brasil é um paraíso racial?


“No meu país o preconceito é eficaz

Te cumprimentam na frente e te dão um tiro por trás”


Música: Racistas Otários

Grupo de Rap Racionais MC


O século XVI marcou o início do tráfico de africanos para o Brasil, o que terminou apenas na segunda metade do século XIX. O tráfico transatlântico sequestrou onze milhões de pessoas do continente africano, dos quais 44%, ou cinco milhões, foram trazidos para este país (Alencastro, 2010). Aqueles que chegaram ao Brasil vieram principalmente das regiões de Angola, Congo, Benin, Nigéria e Guiné, compondo múltiplos grupos étnicos e linguagens (Munanga & Gomes, 2006).


Brasileiros escravizados trabalhavam nas plantações de açúcar e de café e na mineração de ouro, o que contribuiu para a formação e enriquecimento deste país sem, contudo, terem o reconhecimento de direitos humanos básicos. Embora oprimidos e maltratados, os afro-brasileiros exerceram intervenções (ou a agência) em vários domínios de suas vidas. Estudos atuais a respeito deste tema examinam importantes movimentos de resistência e integração de pessoas escravizadas como alternativas para escapar de sua condição subalterna. João José Reis e Hebert Klein (2011) arguiram que até a década de 1980, a escravidão no Brasil foi analisada principalmente a partir de dois pontos de vista: (i) como um sistema integrador harmonioso ou (ii) como uma estrutura socioeconômica fechada. Segundo o primeiro ponto de vista, (i) as contradições raciais são apagadas pela ideia de cooperação entre os escravos e o mestre5, enquanto que no segundo ponto de vista, (ii) a pessoa escravizada é vista como passiva e como vítima6. Reis e Klein (2011) postulam que é necessário abandonar a visão do "senhor normalmente paternalista e o escravo acomodado" ou "do proprietário brutal e do escravo vitimizado”, pela razão de que" tanto o paternalismo quanto a violência são vistos como formas complementares de controle do escravizado'. Por uma perspectiva crítica, nasceu uma terceira perspectiva importante para entender a posição dos africanos no Brasil.


A escravidão brasileira foi violenta. Os negros trabalhavam em condições desumanas, sofriam punição e tinham dificuldades de criar laços afetivos em torno de si. No entanto, enquanto os negros eram submetidos à escravidão, eles lutavam contra ou negociavam com o sistema prevalecente. Como exemplos de resistência fora das estruturas formais, temos a formação de comunidades quilombolas, a organização de ações de vingança violentas, rebeliões e o suicídio. Por outro lado, considerando o modelo de sociedade, algumas pessoas escravizadas lutaram por sua liberdade, comprando suas cartas de alforria ou negociando seu bom comportamento em troca de boas condições de trabalho com seus mestres (Reis & Klein, 2011).


É bastante surpreendente, quando considerando os dados apresentados por Chiavenato (1987), verifica-se que os negros em condição de escravidão representavam apenas 5,6% desse grupo quando da Lei da Abolição (Lei Áurea) foi promulgada em 1888. Mais de 90% deles já havia conquistado sua liberdade por meios dentro ou fora do sistema jurídico formal.


Devido à Revolução Industrial no século XIX, a produção de bens de consumo aumentou, tornando necessária a busca de mercado para esses produtos. Uma das consequências foi o fim do ‘pacto colonial’, que durante muito tempo garantiu a exclusividade das relações comerciais entre as colônias e a metrópole em Portugal. Em seguida, em 7 de setembro de 1822, o Brasil se tornou independente de Portugal e começou o regime imperial.


Independente, porém sem identidade nacional, o conceito de cidadania não tinha qualquer relevância no país naquela época. O comércio de escravos continuou a ser um importante fator econômico. Em 7 de novembro de 1831, o tráfico de africanos foi proibido por meio da Lei Feijó. No entanto, entre 1831 e 1856, 760.000 africanos foram trazidos clandestinamente para o Brasil (Alencastro, 2010).


Ao longo da segunda metade do século XIX, o movimento abolicionista, que lutou pelos direitos civis e pelo fim da escravidão, ganhou força. Em 13 de maio de 1888, foi proclamada a abolição e o Brasil se tornou o último país das Américas a abandoná-la. O fim da escravidão foi necessário para o Brasil não só porque teve um início tardio da industrialização, mas para se declarar o inevitável, considerando que pouco mais de 5% dos negros ainda estavam escravizados.


Em 15 de novembro de 1889, a República foi proclamada no Brasil, e o Império tornou-se algo do passado. Em 1891, uma nova Constituição foi promulgada e o presidencialismo foi estabelecido juntamente com o Poder Legislativo e o voto direto (exceto para os menores de 21 anos, mulheres e analfabetos). Pouco depois, em 1890, o Ministro das Finanças, Rui Barbosa, ordenou a queima de todos os documentos e arquivos relacionados à escravidão no Brasil.


No pós-abolição (1888), o Brasil passou por uma mudança econômica quando o trabalho assalariado substituiu o trabalho escravo. Esta mudança econômica encorajou os imigrantes europeus a ocuparem os empregos disponíveis gerados em novas indústrias e empresas, deixando os negros desempregados. A escassez de empregos fez com que a população negra aceitasse empregos informais, como o trabalho doméstico e outros serviços gerais.


Em decorrência do preconceito e da exclusão territorial, nas primeiras décadas do século XX, a comunidade negra organizou-se em torno de organizações negras recreativas e clubes sociais, alguns dos quais tinham aspirações elitistas, enquanto outros promoviam a cultura afro-brasileira (Samba, Jongo, Maracatu, Capoeira e Candomblé), como uma resposta ao sistema de dominação racial e de classe (Gonzalez, 1982). Exemplos do primeiro tipo de organização e perspectivas ideológicas incluem a chamada Imprensa Negra e a organização política conhecida como Frente Negra Brasileira, que buscava a integração dos negros na sociedade de classes, lutou por cidadania e reivindicou raízes africanas (Guimarães, 2003).


Após a abolição, o ideal de construção de uma identidade nacional através do Estado-nação foi influenciado pelos valores ocidentais. Um exemplo é a lei número 7.967 relativa à política de imigração e assinada por Vargas em 1945. Ela atesta, por meio da admissão de imigrantes, a necessidade de

preservar e desenvolver a composição étnica da população, os traços mais convenientes da sua ancestralidade europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional.


No Brasil, o racismo científico e o Darwinismo social legitimam a "supremacia racial branca" e encorajaram a imigração europeia. Inicialmente, a mistura racial era considerada um fator de degenaração, conforme declarado pelo médico e etnógrafo brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, que confirmou o racismo científico, atestando que a "miscigenação" levou à deterioração e a mistura racial entre negros e brancos havia criado pessoas inferiores. Mais tarde, a ideia de "superioridade da raça branca" significava que a miscigenação eliminaria os negros com o tempo. João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional Brasileiro, que revisou o repúdio à mistura racial no início do século XX, acreditava que a ‘superioridade branca’ no processo de miscigenação entre negros e brancos iria eliminar a raça negra no Brasil. Lacerda acreditava que quando o gene branco se misturava com o gene negro, o gene branco seria dominante e eliminaria as populações negras e indígenas em 100 anos se repetido por várias gerações (Andrews, 1997). Baseado nessa ideia, a nação brasileira propagou o nacionalismo e incentivou a mistura racial entre raças como estratégia para branquear a sociedade brasileira.


Na década de 1930, Gilberto Freyre, influenciado por Franz Boas, rompeu com a ideia do paradigma da hierarquia racial e separou a raça de cultura. Ele rejeitou a ideia do branqueamento e do racismo científico e celebrou a miscigenação como uma marca positiva da identidade brasileira. Ao mesmo tempo, ele proclamava que no Brasil haviam encontros harmoniosos de mistura racial entre diferentes raças (Hofbauer, 2006). Esta foi a fundação da ideologia da democracia racial. Esta ideologia mascara desigualdades e contradições raciais no Brasil.


Nos anos 1950, a UNESCO lançou uma investigação sobre as relações raciais no Brasil. Os objetivos desses estudos foram para entender o país como um exemplo de uma sociedade racialmente harmoniosa. Alguns dos pesquisadores envolvidos foram Florestan Fernandes, Roger Bastide, Thales Azevedo, Costa Pinto, Virgínia Bicudo e Oracy Nogueira. No entanto, estes estudos revelaram que o Brasil não era uma democracia racial e que o preconceito racial existia em todas as comunidades investigadas, de norte a sul, incluindo Pernambuco, Salvador, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, entre outros (Hofbauer, 2006).


Na segunda metade do século XX, em face das desigualdades raciais e da queda do mito da democracia racial, o movimento negro e as organizações culturais e políticas foram reconfiguradas no que diz respeito à política de identidade e tornaram-se cada vez mais Africanistas. Segundo Guimarães (2003), a persistência do racismo e da desigualdade racial levou à criação de movimentos de consciência racial.


A partir da década de 1960, entre um número crescente de negros, a noção de uma cultura afro-brasileira estereotipada foi substituída pela ideia de uma cultura negra em estreita ligação com os desenvolvimentos do chamado Atlântico Negro: EUA, Caribe e África. O Movimento Negro Unificado (MNU) foi criado em 1978. Se a maioria dos militantes da primeira metade do século XX em São Paulo lutou para ser contabilizada como parte de uma identidade nacional, a partir dos anos 1970 eles reivindicaram uma referência transnacional e outros movimentos da diáspora negra ganharam importância significativa (Guimarães, 2003), como o Movimento Por Direitos Civis, Movimento Black Power, os Muçulmanos Negros, especialmente quando liderados por Malcolm X, e organizações como o Partido dos Panteras Negras nos EUA, que inspiraram suas políticas (Pimentel, 1997).


De acordo com Jennifer Roth-Gordon (2012), a miscigenação e o ideal de branqueamento influenciaram os brasileiros a se auto classificarem em múltiplas cores, negando sua negritude na vida cotidiana e individualizando como eles se percebiam e classificavam um ao outro. Com a ascensão do Hip-Hop e outras manifestações culturais negras no Brasil nos anos 1970, essa confusão a respeito da identidade foi substituída por uma apreciação crescente da negritude. O Hip-Hop contribuiu para a construção de um novo orgulho na Negritude entre os jovens negros no Brasil.


3. Hip-Hop: da cidade natal de Nova York à excludente cidade de São Paulo


Bem, o rap é música urbana e tem a ver com o que se passa na cidade. Eu acho que São Paulo é muito semelhante a Nova Iorque e que o elemento comum da cidade leva as pessoas para o rap. A Cultura viaja até aqui rapidamente e as pessoas estão sempre ligadas ao que há de novo. (Entrevista da MTV com o rapper brasileiro ‘Emicida’, 2012)


Nesta seção, argumenta-se que o Hip-Hop, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, surge como um movimento de jovens vítimas da violência racial-urbana e de classe que serve como um instrumento de transformação social por meio de suas expressões alternativas de estética, cultura e protesto social.


Ao longo do século XX, a cidade de Nova York passou por mudanças estruturais que resultaram em sérios problemas para os residentes do Bronx Sul (Chang, 2005). Hoje em dia, o Bronx é um bairro composto por pessoas de várias origens raciais. Sua história é complexa e envolve colonização, desenvolvimento econômico, migração, contradições econômico-sociais, exclusão política e abandono.


No início do século XX, o fluxo migratório proporcionou desenvolvimento econômico e crescimento estrutural no Bronx, um processo que se intensificou após a Segunda Guerra Mundial. Com o fim da guerra, a população do Bronx Sul foi reconfigurada. Grandes casas luxuosas e edifícios foram construídos e os antigos residentes (cerca de 170.000 pessoas), principalmente negros, porto-riquenhos e latinos foram deslocados de suas casas (Hermalyn & Ultan, 1995).


Em 1929, um projeto chamado Consórcio Plano Regional de Nova Iorque foi desenvolvido para servir aos interesses das empresas locais, ligando as áreas centrais à periferia da cidade através da construção de rodovias. A existência de vias expressas exigia a destruição de ruas, casas e estruturas locais (Chang, 2005). Prédios de apartamentos e parques industriais foram construídos perto dessas novas estradas, o que facilitou a distribuição dos produtos (Hermalyn & Ultan, 1995).


Segundo Tricia Rose (1994), os projetos de obras públicas realizadas entre 1930 e 1960, incluindo parques, conjuntos habitacionais e rodovias, acabaram remodelando o perfil da cidade de Nova York. As rodovias eliminaram as áreas mais povoadas, que eram ocupadas pela classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, permitiram o trânsito pela cidade, eventualmente demolindo aproximadamente 60.000 casas e vários negócios. Casas ocupadas por mais de 20 anos por famílias pobres negras e latinas foram esvaziadas, e essas famílias foram forçados a deixar suas casas sem nenhuma perspectiva de moradia digna. Projetos de obras públicas também causaram medo nos comerciantes e seu respectivo desaparecimento. Conforme afirmado por Rose, este grande projeto de expansão da cidade favoreceu os ricos e foi contra os interesses dos mais pobres. Por sua vez, o projeto intensificou as desigualdades econômicas e sociais em Nova York, deixando os residentes do Bronx sem recursos e poder político. O Bronx nos anos 1960 encontrava-se em estado de abandono.


O processo de globalização, que impulsionou o crescimento das redes de telecomunicações, a revolução tecnológica, a competição econômica e uma nova divisão internacional do trabalho, tornou possível a reestruturação social das áreas urbanas da América. No meio da década de 1970, empresas de serviços de informações substituíram plantas industriais e o governo federal cortou os recursos de serviços de assistência social, transferindo-os para os municípios e aumentando a especulação imobiliária. Nesse contexto, houve uma aceleração da desigualdade. A cidade de Nova York acabou por se encontrar em um estado econômico crítico devido ao aumento do desemprego acompanhado por cortes de gastos em serviços públicos e sociais (Rose, 1994).


A mídia de massa, segundo Rose (1994), também contribuiu para uma distribuição desigual de informação. A mídia direcionou o consumo dos moradores da periferia por meio de anúncios. Assim fazendo, acabou por deslocá-los do centro do poder, encarecendo o acesso deles a essas novas tecnologias. As comunidades negra e hispânica tiveram que pagar um preço maior pelo processo de desindustrialização e reestruturação econômica, o que aumentou a criminalidade, a violência, o vício em drogas e as condições precárias de vida em seus bairros.


As pessoas que viviam no sul do Bronx durante os anos 1970 eram principalmente afro-americanos, caribenhos e hispânicos, todos originários de contextos pós-coloniais. Esses grupos responderam à exclusão social, dificuldades econômicas e redução dos serviços sociais através da construção de suas próprias redes culturais (Santos, 2011). Foi neste contexto que o Hip-Hop surgiu como uma alternativa à política de abandono que existia no Bronx: em um tempo em que as casas locais estavam sendo demolidas para dar lugar a um projeto de desenvolvimento que não levava em consideração a realidade dessa população, além de ter fragilizado as instituições sociais locais (Rose, 1994).


“O Hip-Hop emergiu do colapso da desindustrialização, onde a alienação social, imaginação profética e anseio se interseccionam. O Hip-Hop é uma forma cultural que tenta negociar as Experiências de marginalização, oportunidade brutalmente truncada e opressão dentro dos imperativos culturais da história, identidade e comunidades Afro-Americana e Caribenha. É a tensão entre as fraturas culturais produzidas pela opressão pós-industrial e os laços de ligação da expressividade cultural negra que define o quadro crítico para o desenvolvimento do Hip-Hop.” (Rose, 1994, p. 21)


É importante notar que além desses problemas, a população afro-americana também enfrentou políticas segregacionistas e violência racial ao longo de todo o século XX. Segundo Spensy Pimentel (1997), com o apartheid em vigor desde o final da escravidão nos Estados Unidos, os Negros Americanos se organizaram para lutar contra opressão racial.


Assim como Nova York, São Paulo passou por um processo de transformação ao longo do século XX que, doravante, exacerbou ainda mais as desigualdades e a violência. Esta foi a primeira cidade do Brasil a se industrializar no início do século XX, logo após a abolição, quando o Estado brasileiro voltou a atrair novamente os imigrantes europeus para trabalhar nas novas fábricas. Havia, como em todas as grandes cidades, pessoas de várias origens: afro-brasileiros, africanos, brasileiros brancos, europeus, indígenas, asiáticos e assim por diante. No entanto, o desejo do Estado-Nação era o de construir um modelo de sociedade europeia e excluir os não-brancos. Isso gerou graves desigualdades.


Entre ideias como 'democracia racial' e a 'tese do branqueamento', a maioria da população no Brasil foi inconscientemente racializada. Por exemplo, em São Paulo após a abolição, ainda havia lugares em que o público era definido por critérios raciais e econômicos. Isso encorajou a segregação racial e de classe na cidade. A elite paulista antigamente ocupava lugares na região central cujo acesso era restrito a pobres e negros. Estes locais na região central incluíam clubes, teatros, cinemas, bem como espaços privilegiados para a educação (Caldeira, 2000).


Em São Paulo, o objetivo da elite era viver o mais longe possível da população pobre e os pobres em sua maioria eram Negros. Para isso, eles começaram a se mudar do Centro Velho para outras regiões centrais hoje conhecidas como Higienópolis, Campos Elíseos, Avenida Paulista, etc. Além disso, o governo de São Paulo construiu um plano de expansão para a cidade, segundo o qual os pobres seriam transferidos para os subúrbios. O primeiro plano, denominado ‘Plano das Avenidas’ deu início ao projeto de segregação em São Paulo, expandindo a cidade para regiões mais remotas, acompanhado pela implantação do sistema de transporte público para ligar os residentes pobres desses novos territórios às suas regiões de trabalho (Caldeira, 2000).


Segundo Teresa Caldeira (2000), as regiões da periferia para onde a população pobre foi transferida eram terras ilegais, e não possuíam infraestrutura básica como hospitais, escolas, segurança, ruas asfaltadas, energia elétrica, saneamento básico, tratamento de água, etc. Com recursos limitados, a população que vivia nessas regiões começou a construir por si própria suas moradias, sem qualquer planejamento. Enquanto isso, a classe média e os ricos tinham suas casas mobiliadas com financiamento público do governo, em regiões estruturadas. Este contexto criou a distância geográfica e estrutural entre as diferentes classes sociais de São Paulo. A maioria da população, negra e pobre, foi transferida para residir em lugares perigosos.


Como atesta Macedo (2007), o centro de São Paulo é um território negro que já foi tradicionalmente ocupada pela população negra desde o final do século XIX, onde encontros e intercâmbio cultural aconteciam. Mesmo depois de terem sido transferidos para os subúrbios, eles continuaram ocupando o centro de São Paulo, produzindo atividades sociais, culturais, políticas e econômicas. No final dos anos 1960, festas negras eram realizadas em São Paulo no centro da cidade e no início dos anos 1980, os precursores do Hip-Hop ocuparam esta região para trocar informações sobre o novo movimento Hip-Hop que chegava ao Brasil.


4. ‘A Juventude Negra Agora tem Voz Ativa ’7: as raízes e características do Hip-Hop brasileiro


“Precisamos de um líder de crédito popular

Como Malcom X em outros tempos foi na América

Que seja negro até os ossos, um dos nossos

E reconstrua nosso orgulho que foi feito em destroços”

(Racionais Mcs, grupo de Rap music: Racistas Otários, Brown & Blue, 1994)


O Hip-Hop chegou ao Brasil no final dos anos 1970 através das festas negras, que ocorriam na cidade de São Paulo. Segundo Macedo (2007), a partir da década de 1950 o Brasil foi fortemente influenciado pelos Estados Unidos por conta do maior acesso a produtos como álbuns fonográficos e de vinil. Estes bens proporcionaram os meios pelos quais os Negros em São Paulo passaram a ter maior contato com artistas americanos. Durante este tempo, uma vez que os negros sofriam restrições por fatores econômicos e sociais para se reunir em espaços públicos, eram organizadas festas de fundo de quintal. No período dos anos 1960-1970, as equipes de som eram responsáveis por fazer as festas Black paulistas em espaços fechados extremamente populares. ‘Black parties’, em português ‘Bailes Black’, exibiam artistas locais e muitos deles Negros. Entre 5.000 e 10.000 pessoas participavam desses eventos, que eram como grandes clubes noturnos. Exemplos dessas Equipes de Som são ‘Chic Show’, ‘Zimbabwe’ e ‘Transanegra Black Mad’, que ocuparam grandes clubes noturnos no centro da cidade. A influência musical dessas discotecas foi o funk, soul, e o jazz, entre outros ritmos da música negra norte-americana (Figura 1).



Panfleto de um baile black - James Brown em São Paulo, 1978. Fonte: Arquivo King Nino Brown.


Foi também por meio dos bailes black que o sentido de Diáspora e ideias como o Pan-Africanismo e da Negritude se espalharam pelo Brasil. Os bailes black de São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro uniram a população negra e expandiram a consciência Black Power. Segundo Pimentel (1997), esses bailes "apresentavam projeções de slides com cenas de filmes sobre Negros americanos, junto com fotos de celebridades Negras, músicos ou atletas do Brasil e do exterior. 'Essas festas também divulgavam ideias de escritores e militantes afro-americanos, livros como ‘Soul on Ice’ (1971), livro do ex-Pantera Negra Eldridge Cleaver; Negras Raízes (1976) de Alex Haley, bem como artigos de pensadores negros e líderes como como Angela Davis e Malcolm X, e acima de tudo a música de James Brown.


As ideias que proliferaram em músicas, como "Say it loud: I'm Black and I’m proud!" (Diga alto: Eu sou Negro e tenho orgulho disso!” de James Brown (1968), foram tidas como elementos para a construção do orgulho Negro e da identidade Negra. Foi através da comercialização destes álbuns que os negros brasileiros foram informados sobre o que acontecia na América negra. Ali, eles aprenderam sobre black music, movimento negro e orgulho negro. As raízes do Hip-Hop brasileiro estão nos bailes black. Esses espaços eram lugares onde os jovens negros podiam se sentir como se estivessem entre iguais, e onde o entretenimento era vivenciado como um momento alternativo diferente do racismo cotidiano. Nessas festas, a hierarquia racial que está presente no dia a dia desaparece (Felix, 2005) (Figura 2).



Figura 2 – Baile black, 1980. Fonte: arquivo de King Nino Brown.


A partir da cidade de São Paulo, as festas negras se espalharam rapidamente pelo interior do Estado de São Paulo. No início do século XX, os negros do interior de São Paulo tiveram que criar seus próprios lugares para entretenimento, conhecidos como clubes sociais negros, porque eles não podiam associarem-se a clubes controlados por brancos. Os clubes sociais negros buscavam informações sobre a música negra na cidade de São Paulo na forma de discos de vinil, revistas e produtos de beleza. Chamo esse processo de ‘Corredor Negro’, porque os clubes sociais Negros construíram redes responsáveis por rapidamente espalharem as ideias que chegavam aos bailes black de São Paulo para outras regiões (Santos, 2011).


A partir desses bailes black, os milhares de jovens negros que eram frequentadores começaram a se organizarem, em termos de identidade política em lugares públicos do centro de São Paulo. Foi através da comercialização de álbuns, filmes e revistas feitos nos EUA que os negros brasileiros foram apresentados ao Hip-Hop. Eles tinham contato com novas danças através de vídeos que os DJs projetavam no salão das casas que promoviam os bailes. Também eram lidas revistas americanas de Hip-Hop. Conforme observado pelo DJ KL Jay: "Um cara recebia uma revista, traduzia naquele inglês bem fajuto e levava para as pessoas.”(Geremias, 2006).


O primeiro ponto de encontro dos jovens do Hip-Hop foi o Largo São Bento, e logo depois, uma galeria de classe baixa denominada ‘Galeria da 24 de Maio’ (24 de Maio), seguidos pela Praça Roosevelt. Foi no Largo São Bento que os dançarinos de break apresentavam suas técnicas, e começavam a difundir esse conhecimento não só com o corpo, mas também com suas mentes. Foi lá também que nasceu o Rap brasileiro, que era cantado entre palmas e batidas feitas com a boca das pessoas (Geremias, 2006) (Figura 3).



Figure 3. Dançarinos de break no Centro de São Paulo – Cover do disco da Kaskatas, 1984.


Na Praça Roosevelt, o pessoal do movimento Hip-Hop criou a primeira organização brasileira de Hip-Hop, denominada "Sindicato Negro". Unidos em lugares públicos, eles falavam sobre História, realidade, novas expectativas e produziram a primeira revista de Hip-Hop brasileira, chamada ‘Pode Crê’, e juntos organizaram o ‘Geledés - Instituto de Mulheres Negras' entre 1993-1994, fundamentado em quatro eixos.


A capa da Figura 4 revela expressões, nomes e ideias que mostram a forte ligação entre a juventude negra do Brasil e dos Estados Unidos. A frase ‘A juventude negra agora tem voz ativa’ surgiu após o contato com o Hip-Hop em São Paulo e seu expressou o impacto político; a biografia de Malcolm X, a história do Hip-Hop brasileiro e notícias sobre as equipes de som e sobre a trajetória afro-brasileira. A capa também inclui uma entrevista com Mano Brown, um MC do famoso grupo de rap Racionais MCs, que, como outros jovens brasileiros, usavam ‘Brown’ em seus apelidos para homenagear o padrinho do soul: James Brown.



Figura 4. Revista ‘Pode Crê’ – capa da primeira edição.


Do Centro da cidade, esses jovens levavam o movimento Hip-Hop para seus bairros e construíram organizações de Hip-Hop chamadas ‘Posses’. Osmundo Pinho (2001) define as ‘Posses’ como grupos coletivos que eram organizados localmente em bairros ou regiões com o objetivo de resgatar a autoestima dos jovens e promover a consciência política. Mesmo com o papel desempenhado pelos coletivos chamados ‘Posses’ nos bairros, o Centro continuava sendo um ponto de referência e intercâmbio, onde eram realizados bailes black nas ruas e nos salões de dança, eram consumidos produtos étnicos (musical e esteticamente), idas a salões especializados em penteados africanos e construíam redes sociais significativas. Eles moravam nos subúrbios, mas saíam de suas casas para curtir sua Negritude no Centro de São Paulo, tornando aquele um espaço para identificação étnica e referência, onde podiam trocar informações sobre a Experiência Negra, e voltavam para casa para socializar e compartilhar as informações em suas comunidades locais por meio de imagens e símbolos: cabelos, designs de camisetas, música, discurso, etc.


Os coletivos chamados de ‘Posses’ ganharam grande visibilidade na década de 1990 por sua capacidade de mobilizar, coordenar e dialogar com os jovens locais. O Hip-Hop, então, passaria a ser eficaz em trazer transformações que eram necessárias para a melhoria dos bairros pobres, criando espaços alternativos de entretenimento esporádico. Além disso, os jovens estavam mudando suas vidas através do contato com o Hip-Hop, saindo da criminalidade e das drogas. O Hip-Hop se tornou um estilo de vida para esses ativistas.


Jennifer Roth-Gordon (2008) aponta que os brasileiros do movimento Hip-Hop desenvolveram conexões a partir das ressonâncias nas desigualdades, racismo e violência dos Estados Unidos e do Brasil. Embora os brasileiros tenham acesso limitado ao inglês, eles foram muito influenciados por movimentos afro-americanos como o Hip-Hop: ‘[buscando] empoderar a si mesmos por meio da postura de confronto, que eles associaram aos espaços urbanos racializados dos EUA.' Para combater o mito da ‘democracia racial’, Roth argumenta que brasileiros do movimento Hip-Hop desafiaram o silêncio sobre raça e racismo, incorporando ideias das relações raciais americanas.


“Rappers politicamente conscientes, como os Racionais MCs, assumiram elementos da era dos direitos civis americanos, identificando políticas que contradizem diretamente a imagem do Brasil como uma democracia racial (e assim) rejeitando a pedra angular do nacionalismo brasileiro.” (Roth-Gordon, 2008, 70)


Roth-Gordon (2012) argumenta que o Hip-Hop global ofereceu ao homem negro brasileiro oportunidades de participar da modernidade, substituindo estereótipos negativos de empobrecimento por práticas cosmopolitas e modernas. Em outras palavras, Roth-Gordon (2008) defende que os homens negros brasileiros estão buscando, por meio do Hip-Hop, o prestígio e o poder do Primeiro Mundo, especificamente dos EUA. Eu diria, no entanto, que o Hip-Hop no Brasil se expressa mais como um instrumento político do que como um instrumento de parceiros de consumo ou de prestígio social. Os jovens negros brasileiros incorporaram o Hip-Hop para expressar a vida cotidiana, de forma semelhante à juventude negra norte-americana, e não como veículo de ascensão social. As características locais do Hip-Hop como um instrumento de luta pelas demandas da comunidade, que Morgan e Bennett identificam como ‘globalização’, nos ajudam a ver o desenvolvimento simultâneo de ‘dinâmicas globais e locais’.


A cultura é a capacidade singular do ser humano de organizar suas experiências por meio de símbolos e de interagir com novos elementos que produzem novos usos para esses símbolos. Portanto, a globalização, muitas vezes vista como um projeto de hegemonização pelo mundo ocidental, produz um duplo movimento entre o local e o global. Em outras palavras, o que existe no contato entre as diferentes culturas e as práticas sociais é o processo que Marshall Sahlins (1997) chama de "intensificação cultural", que significa o "desenvolvimento de integração global e diferenciação local", simultaneamente.


Muito embora os fenômenos globais não dominem as cenas locais, o que aconteceu nos EUA com o nascimento da cultura Hip-Hop, tornou-se um exemplo para a luta por melhores condições de vida no mundo e permitiu a ascensão do ‘Hip-Hop global’. Este fenômeno explica o desenvolvimento do Hip-Hop em diferentes contextos e como essa expressão cultural produz cenas locais que estão envolvidas em realidades sociais e políticas (Morgan & Bennett, 2011). Não podemos negar que a influência da cultura afro-americana entre os negros no mundo está relacionada à ascensão do Império Americano. Morgan e Bennett (2011) argumentam que esse fenômeno ocorreu a partir do final do século XIX. Desde a era Jim Crow nos Estados Unidos, a música afro-americana efetivamente pregou o orgulho negro pelo mundo inteiro. Segundo as autoras, o Hip-Hop é a primeira expressão da cultura afro-americana, nascida após a era dos direitos civis, e continuou esta luta contra o racismo espalhando ideologias revolucionárias pelos continentes.


Morgan e Bennett (2011) apontam que o Hip-Hop global surgiu como uma cultura que desestabiliza as fronteiras convencionais e dominantes de identificação, encoraja e integra práticas sociais e culturais, constrói identidades e permite a organização política. Hoje, este movimento empoderou e estimulou os jovens a construir, através da arte, uma visão crítica de mundo e um estilo de vida. O Hip-Hop se espalhou pelo mundo e produziu o que Morgan e Bennett chamam de "cenas locais do Hip Hop", onde os jovens praticam os elementos do Hip-Hop, debatem e criticam os sistemas sociais estabelecidos.


Semelhantemente à interpretação de Morgan e Bennett, o Hip-Hop brasileiro constituiu-se em uma cena local que se apropriou de uma cultura global. Mais do que uma associação com um império dominante, este movimento tem se expressado neste contexto como um instrumento político de arregimentação.


Um dos vários exemplos importantes é a casa de Hip-Hop de Diadema. Os brasileiros do movimento Hip-Hop, desde o final da década de 1980, desenvolveram projetos autônomos em seus bairros locais. O reconhecimento de seus trabalhos possibilitou que muitos deles se tornassem educadores sociais na década de 1990 e que desenvolvessem atividades em diversas organizações sociais, como escolas e ONGs (Santos, 2011). Mas muitos desses ativistas buscariam seu próprio espaço dentro do Hip-Hop. A primeira experiência teve início em 1999 na cidade de Diadema. Naquele ano, militantes ocuparam o Centro Cultural Canhema, localizado na periferia de Diadema, e o transformaram em um espaço do Hip-Hop, dando início a uma ideia que se espalharia pelo Brasil. Hoje há muitas casas de Hip-Hop no Brasil.


A maioria dos membros do movimento Hip-Hop da Casa de Hip-Hop de Diadema definiriam o Hip-Hop em termos de educação, estilo de vida, expectativas sociais e História. Lá, eles ensinavam [estes] quatro elementos do Hip-Hop e também o conhecimento (o quinto elemento) por meio da biblioteca da casa de Hip-Hop. Além disso, suas referências americanas não seriam relacionadas a padrões de consumo, mas à luta política da Negritude: à ‘Universal Zulu Nation’, ‘Public Enemy’ e outros grupos de Rap. Eles também vão criticar o discurso do Império cultural americano, de que o ‘Hip-Hop não é um movimento norte-americano, reposicionando-o como um movimento diáspórico e um patrimônio dos negros’ (Santos, 2007) (Figura 5).


Figura 5. Grafite na frente da Casa de Hip-Hop e King Nino Brown, 2009. Fonte: arquivos de King Nino Brown.


Hoje, a casa de Hip-Hop de Diadema é referência nacional e internacional, especialmente na América Latina. Esta casa foi o primeiro lugar de Hip-Hop que o Afrika Bambaataa visitou no Brasil. Uma das características centrais desta casa é o trabalho com o quinto elemento do Hip-Hop: o conhecimento. (Figura 6).



Figura 6. Dentro da Casa de Hip-Hop, 2012. Fonte: arquivos de King Nino Brown.


Naquele ano, a edição brasileira da MTV concedeu seus prêmios VMB principalmente à cultura Hip-Hop. Participaram artistas como Emicida, Projota, Racionais MCs e Criolo. Todos os apresentadores destacaram o papel social do Hip-Hop no Brasil por denunciar os problemas atuais. Mas, eu devo destacar a mensagem de Mano Brown ao concluir esta seção: ‘O show é protesto e o protesto é o show, atenção pois o sucesso em excesso é ruim.’


Esta mensagem de Mano Brown significa muitas coisas. Se os brasileiros do movimento Hip-Hop pegaram emprestados elementos da cultura afro-americana, o Hip-Hop brasileiro também possui particularidades locais. Por exemplo, uma frase popular entre as pessoas do movimento Hip-Hop brasileiro é que ‘A Cultura sem movimento é cega, e o movimento sem cultura está aleijado '.


Em ‘Ideologias da marginalidade no Hip-Hop brasileiro’8 Derek Pardue (2008) apresenta uma maravilhosa etnografia do Hip-Hop de São Paulo. Seu livro nos revela que, no Brasil, o Hip-Hop é uma forma de identidade expressa através da política e do prazer da juventude marginalizada '. De acordo com este autor, os brasileiros do movimento Hip-Hop vêem o movimento como um "sistema sociocultural" por meio do qual eles podem encontrar uma maneira de se auto-empoderar, discutir a realidade e encontrar "salvação".


5. A Nação Universal Zulu no Brasil

Essa história começa com a audácia do ‘Rei Zulu’ Nino Brown. Seu nome original é Joaquim Ferreira de Oliveira. Ele nasceu em 1962 na cidade de Garanhuns, estado de Pernambuco. Buscando melhores condições de vida, em 1974 ele se mudou para São Paulo. Em 1977, com 15 anos, na cidade de São Bernardo do Campo, teve o primeiro contato com a música de James Brown. Logo depois ele começou a dançar funk e deu início a uma coletânea sobre o ‘Padrinho do Soul’ (James Brown), na qual reuniu discos, fotos, panfletos, jornais, revistas, folders, etc. Nino é seu apelido de infância. Mas além disso, por conta de sua admiração por James Brown, ele ficou conhecido como Nino Brown.


Em 1984 ele iniciou sua coleção de Hip-Hop, reunindo o mesmo tipo de material que coletava do ‘Padrinho’ do Soul (James Brown). Como dançarino de break e membro do movimento Hip-Hop, King Nino Brown participou de várias peças, eventos musicais, palestras, seminários, conferências e projetos sociais sobre Hip-Hop e educação. Em 1990, com o objetivo de aprimorar a luta negra, passou a produzir ‘zines’ sobre personalidades negras no Brasil e no exterior, que foram divulgados entre os ativistas do Hip-Hop. Em 1993 ele fundou, com outros jovens do movimento Hip-Hop, a ‘Posse Hausa’, considerado um dos mais importantes patrimônios do Hip-Hop brasileiro. Em 1999, com outros militantes do Hip-Hop, ele fundou na cidade de Diadema a primeira casa de Hip-Hop do Brasil. Ele ganhou vários prêmios em reconhecimento de seu ativismo social e cultural. O ‘Rei Zulu’, King Nino Brown, tem o maior acervo da cultura Hip-Hop brasileira.


Em 1994, através da capa do disco ‘The Light - Afrika Bambaataa and Family’, Nino Brown teve acesso ao endereço da nação Zulu e começou a trocar cartas com os membros do movimento Hip-Hop afro-americano. Nino escrevia em português e recebia respostas em inglês (Figura 7).



Figura 7. Capa do disco - Afrika Bambaataa and family, 1988.


Com essas cartas, circulavam jornais e ‘fanzines’ sobre o negro e a luta social, que se dirigiam a integrantes do movimento Hip-Hop de outros países, endereçadas a presos políticos, que influenciavam significativamente o ativismo Hip-Hop no Brasil. Desde aquele ano, Nino Brown foi reconhecido como um membro da Nação Zulu; no entanto, foi apenas em 1999 que o grupo Afrika Bambaataa viajou ao Brasil pela primeira vez e em 2002 batizou Nino Brown como Rei Zulu Nino Brown, um legítimo representante daquela organização no Brasil. Hoje, King Nino Brown viaja pela América do Sul nomeando outros membros Zulu nesta região. (Figura 8).



Figura 8. Afrika Bambaataa na Casa do Hip-Hop, 2002. Fonte: Arquivo King Nino Brown


Esta troca de cartas contribuiu para o desenvolvimento da filosofia da A Nação Zulu Universal - ‘The Universal Zulu Nation’ - no Brasil, a fim de construir uma conexão estreita entre os brasileiro e os ativistas americanos do movimento Hip-Hop, em relação às agendas políticas e para promover identidades diaspóricas.


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Nosso agradecimento especial à Jaqueline Lima Santos, Doutora em Antropologia Social pela UNICAMP, mestre em Ciências Sociais/Antropologia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP, licenciada e bacharel em Ciências Sociais pela PUC-Campinas, pela contribuição memorável.

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