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ASPECTOS DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEIS À DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Bel. Leonil João de Lima (in memorian)


Para abordar alguns dos diversos conceitos da palavra igualdade, cabe retomar o parecer do jurista Paulo Bonavides a respeito do § 1º do art. 39 e os arts. 135 e 241 da Constituição Federal:

[...] igualdade fática é conceito-chave na interpretação da equivalência de direitos. Forma de isonomia natural, ela se quantifica juridicamente como regra que obriga o Estado, se necessário, à prestação positiva; os direitos isonômicos derivados do art. 5º da Constituição, são direitos de status positivo e ativo e não apenas do status negativo, conforme compreensão que da igualdade jurídica tinham alguns mestres do constitucionalismo clássico.

À vista desta interpretação e ao se examinar aspectos da atual Constituição Federal, percebe-se que, apesar de tudo, as desigualdades, com ela e a despeito dela, convivem.

Para tanto, basta que se analisem o alcance dos princípios da igualdade contidos na Carta Magna, em três momentos: o que a antecedeu, o de sua elaboração e o de sua aplicação.

Neste último aspecto, ressalte-se que nem a Constituição nem as leis tornam-se eficazes apenas por vontade intrínseca ou pela simples vigência; é preciso mais: porém, nossa realidade está distante da eficácia plena, pois é preciso desenvolver novas formas de participação política e diferenciar as lutas democráticas reivindicatórias que buscam o acesso aos bens materiais e imateriais indispensáveis à concreção do princípio segundo o qual todos nascem e devem permanecer iguais, em dignidade e direitos.

Isto posto, cabe examinar as leis aplicáveis à discriminação: o arcabouço jurídico existente garante o tratamento igual a todos os setores da população, o que, na prática, não ocorre, face à dificuldade de acesso à justiça, especialmente pelas camadas marginalizadas da população, onde se encontra a maioria do povo negro.

Para lembrar o mínimo, os instrumentos legais mais importantes que regulam as relações sociais, foram instituídos nas primeiras décadas deste século.

Neste ponto, talvez caiba analisar-se, embora sucintamente, a evolução legal desde Palmares, bem como a repressão sofrida pelos seguidores de Zumbi, passando pelo período da Regência, quando se legislou reafirmando o direito do senhor de castigar seus escravos, com esta moderação: até cinquenta chibatadas/dia (o açoite era, segundo eles, o instrumento que dava o caráter humano e corretivo ao castigo).

Quanto às leis pré-abolicionistas, oriundas da pressão inglesa, veja-se que o acordo de 1815, que proibia o tráfico de escravos, nunca foi respeitado; em 1831, a proibição da importação de escravos, declarando livres todos aqueles vindos de fora do Império, também se mostrou lei morta; foi apenas a lei 581, de 4 de setembro de 1850 (Eusébio de Queiroz) que, afinal, extinguiu efetivamente o tráfico legal, embora o contrabando permanecesse ativo durante algum tempo.

Portanto, desta sucessão de leis, somente a última resultou em eficácia relativa; mas, só em 1856.

Em 1869 (15 de setembro), foi proibida a separação da família escrava; em 1871 (28 de setembro) a Lei do Ventre Livre declarou livres os filhos de escravas que nascessem “desde a data desta lei”, o que, embora de amplo espectro, teve pífio resultado; a seguir, a Lei dos Sexagenários (de 28 de setembro de 1885) deu corpo a “mais uma perfumaria jurídica”: era utópico imaginar que, no regime da escravidão, o escravo conseguisse viver por mais de 60 anos…

Finalmente, a lei Áurea, de 13 de maio de 1888.

Concentrando-se no após Lei Áurea, ressalve-se que, ironicamente, no dia 4 de junho (a menos de 30 dias da vigência da lei que não dispôs sobre o pós-abolição) era aprovada a primeira versão da Lei contra Vadiagem, que vigorou até recentemente por se incorporar aos costumes; esta, pune preferencialmente jovens negros desempregados, moradores das periferias das grandes cidades.

Já nos albores da República, ou seja, em 28 de junho de 1890, determinou-se que apenas com autorização do Congresso Nacional poderiam ser admitidos africanos e asiáticos no território nacional… enquanto isso, muitas facilidades eram fornecidas aos imigrantes europeus.

Em 1945 (18 de Setembro) decretou-se que todo estrangeiro poderia entrar no Brasil, “desde que satisfaça as condições estabelecidas em lei”, que ressalta: “atender-se-á, na admissão dos imigrantes, a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características convenientes à sua ascendência europeia.”

Quanto à Lei Afonso Arinos, decorreu, apenas, do clamor popular, que não se conformava com o vexame público internacional a que o país foi submetido quando a bailarina afro-americana Katherine Dunhan foi impedida de hospedar-se em hotel na capital paulista, por ser negra.

Essa lei teve, de positivo, o reconhecimento da existência de racismo no Brasil; no entanto, negativo foi o fato de não tê-lo incluído como crime, mas como mera contravenção penal - como multa por estacionamento em local proibido, por exemplo.

Já a Constituição de 1988, no inciso XLII do artigo 5º, caracterizou o racismo como crime - inafiançável e imprescritível - punido com pena de prisão; sobre esta nova disposição constitucional surgiu, em 1º de janeiro de 1989, a lei Caó (de autoria do Dep. Carlos Alberto de Oliveira), que pune, com rigor, os que forem por ela condenados (um a quatro anos de reclusão).

Porém, a prática tem demonstrado que crimes escancaradamente praticados por racismo – tais como chamar negros de macaco – são, costumeira e constantemente tipificados como injúria racial, que traz pena muito mais leve; além do que, esta pode ser convertida em mero cumprimento de ações sociais.

Parece cabível enfatizar que o dispositivo legal vigente seria um avanço do ponto de vista político; porém, ainda não o é na prática técnico-jurídica, uma vez que as poucas vezes em que a lei foi testada, a sentença prolatada foi um exemplo explícito de intolerância racial do próprio julgador.

Neste sentido, entende-se que, embora percorrido longo e árido caminho, é absolutamente necessário que organizações não vinculadas ao aparelho estatal exijam a construção de políticas públicas que eliminem os desníveis sociais que, como efeito secundário, tornam inviável a plena aplicação da legislação.

Como conclusão, parece possível afirmar que a estrutura legal e jurídica do Brasil sempre foi calcada na necessidade de se manter distância entre os senhores e seus serviçais, escravos ou libertos.

Assim a legislação, se durante o período colonial-escravista, não previa direitos aos negros, a abolição, que trouxe, em seu rastro, a república, em nada alterou a classe de pessoas, antes ressentidas com o império; desta forma, no novo regime, pretendeu-se manter o status quo intocável.

Assim se procedeu e assim se procede, até hoje: o Código Civil brasileiro entrou em vigência em 1915, e o Penal em 1940; mas, toda a legislação que trata das relações raciais no Brasil parece feita para não ser cumprida.

É preciso reverter esta multissecular lógica, o que só será possível se não formos omissos no enfrentamento das discussões que buscam o aperfeiçoamento das instituições jurídicas no Brasil.


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