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A gênese do Direito africano

Por Patrícia Ferreira [1]

Conta-se que as várias viagens de Aristóteles ao Egito são totalmente silenciadas; assim também com Alexandre, o Grande que, ao destruir os templos egípcios, destruiu a literatura local e creditou a ele mesmo a escola que hoje é dita “escola de Aristóteles”.

Da mesma forma com as obras creditadas a Platão. Inclusive, o fato de Sócrates não se apegar a escrever o que aprendia e ensinava, provavelmente decorre da tradição oral do Egito, porque a Escola dos Mistérios prezava muito por guardar seus conhecimentos; daí a preferência pela oralidade, em lugar da escrita[i].

Isto é: se os egípcios não escreviam seus segredos, guardados apenas por via exclusivamente oral, era para que os mesmos só pudessem ser partilhados com aqueles que reunissem condições de acessar e compreender este elevado nível de saberes que, informe-se, amalgamava ciência e religião; então, era muito sério: eles não escreviam e a oralidade servia como instrumento de preservação do conhecimento.

Para iniciar esta abordagem, é preciso informar que a menção ao termo “africano” neste estudo, refere-se a todo negro do mundo, não só a quem está na África: esta a base do pan-africanismo, conforme se pode encontrar em “Procure por mim na tempestade”, de Marcus Garvey.

Isto posto, é preciso deixar claro também, antes de prosseguir, que, ao se falar de África, fala-se de culturas e sociedades muito diversas; porém, mesmo diante deste grande mosaico, todas elas são como galhos da mesma árvore, ou seja: embora toda a diversidade, a raiz tem fundamentos basilares, observáveis na maior parte das culturas tradicionais africanas.

Assim sendo, pode-se partir da sociedade egípcia como exemplo, até porque esta é a mais antiga: como é dela que escorrem todos os demais conhecimentos africanos, informe-se que é neste viés que vamos nos posicionar, a partir daqui.

Primeiramente, note-se que a sociedade africana se desenvolve em ambiente natural bem mais ameno que aquele que vê surgir a matriz cultural europeia, porque, nele, a base agrícola encontra natureza mais constante e, consequentemente, mais previsível.

Como decorrência, é às mulheres que recai a responsabilidade sobre o trato da terra, cabendo, aos homens, a caça, a coleta e a defesa de seu grupo; mas, sendo elas que plantam, são elas que desenvolvem as técnicas da agricultura africana, por encarregadas de separar, conhecer e catalogar as sementes, sabendo qual delas estava adequada para plantio, onde e quando; da mesma forma, quanto aos cuidados com a prole.

Quanto a esta, adquire importância pela intenção de formar sociedades com diversidade de indivíduos, para que os mesmos possam desenvolver-se em conjunto, complementando-se; em consequência, as mulheres passam a ser consideradas, praticamente, como deusas, por serem, assim como a terra, as únicas portadoras da fertilidade.

Portanto, ao contrário do que ocorria na Europa, os africanos criavam seus rebentos coletivamente, com pouca ou nenhuma preocupação quanto a definir que filho é de qual família: todos eram da sociedade; daí o ditado que informa que, para educar uma criança, é preciso uma aldeia inteira.

Diante disto, as duas maiores preciosidades desta sociedade, a terra e a prole, eram frutos da mulher, reafirmando a importância dela: praticamente, uma deusa.

Consequentemente, nascem daí sociedades não apenas patriarcais ou patrilineares, mas, também, matrilineares e matriarcais, ou seja: a mulher como cabeça da família, o que pode ser verificado, entre outras fontes, no livro “Espírito da intimidade”, de Sobonfu Somé.

É neste modelo que surgem sociedades fortes, baseadas no coletivo: nelas, o Estado tinha, como intenção, não a desnecessária proteção da propriedade privada, porque havia abundância natural; a intenção primeira se volta à proteção do ser humano, da pessoa, individualmente mas em sociedade; especialmente quanto à prole e à mulher.

Neste ambiente, o indivíduo não era abandonado: apesar de todas as coisas serem coletivas, o indivíduo ainda mantinha muita importância, por ser tratado, pelo grupo, como imprescindível membro do corpo social: assim sendo e como exemplo, quando um membro do grupo adoecia, todo a sociedade se unia para curar o doente.

Quanto ao indivíduo, não fazia sentido fora do coletivo; é o que justifica a escravidão dos apátridas, que perdiam o sentido e a humanidade quando fora da própria sociedade.

Desenhado o quadro, parece ser este o momento adequado para abordar Maat, a deusa egípcia do conhecimento, da justiça e da ordem; sendo ela a base da justiça, permite abordar, com maior profundidade, a Lei no formato egípcio, não sem antes recomendar que se leia John G. Jackson[ii] que, em Christianity before Christ[iii] e outros livros, sugere a existência de bases africanas na fundamentação do cristianismo.

Quanto a Maat, não é a deusa inatingível que, lá de longe, está em constante oposição contra a desordem e a injustiça; o que ela recomenda é a permanência, incansável, da busca do equilíbrio, que só é alcançado através da constante crítica, ou seja: busca-se o conhecimento para que, através dele, se consiga fazer, entender e praticar o que é bom.

Então, a Lei de Maat não tem a intenção de formular um catálogo comportamental com deveres e interditos a serem seguidos, formatando um conjunto de normas e ordens a serem rigorosamente obedecidas; a intenção é evoluir sempre e constantemente, tornando todos mais sábios, para que saibam o melhor a fazer a cada momento.

Com isto em mente, parece compreensível que o Direito africano não se prenda a normas escritas, mas que a definição e aplicação dos deveres, direitos e obrigações se apure em reuniões de anciões que, por vezes, se estendem por longos dias, onde se busca o consenso, não a maioria.

Mais diretamente: se o dever é de evolução constante, é de se aceitar que quanto mais idosos os membros da sociedade, maior experiência carreguem consigo, de onde maior sabedoria e senso de justiça, sendo este controlado pela discussão em grupo, onde o consenso serve, também, como ajuste e evolução do conhecimento social.

Ser justo e sábio, portanto e na concepção filosófica egípcia, é ser bom o suficiente para praticar o bem; assim sendo, o salário desta vida de sabedoria e justiça, é a própria vida.

Daí que, para o antigo egípcio, não existe a vida interrompida pela morte, seguida pela ressurreição para a eternidade: a vida é continuação; continua-se vivo embora fisicamente morto, mesmo que simbolicamente, visto que qualquer sociedade se assenta sobre o que suas gerações anteriores desenvolveram, permitindo, à atual, prosseguir com a evolução posterior; isto, sim, é concepção filosófica muito profunda, porque entende que ninguém que exista pode deixar de existir.

Para tal concepção, não faz sentido entender que a perda do corpo físico significa o desaparecimento total, ou seja, a morte; quem está vivo, continua vivo, mesmo que apenas em essência, pois permanece vivo em sua descendência; o contrário também é real: quem está morto está morto, mesmo estando vivo.

Isto é: quem morre longe das leis de Maat, fica sujeito ao tribunal de Osíris, que consome este morto, ou vivo-morto; mas, não consome para o inferno: consome no sentido de sair da existência, porque este ser socialmente amorfo, não faz sentido no universo; sequer é entendido como humano, já que, para ser humano, é incontornável o dever de adquirir conhecimento e perseguir a justiça.

Então, percebe-se que não existe dogmatismo; não existe regra fixa, porque a regra é a interminável busca do conhecimento, o que impõe a mutabilidade constante, já que o conhecimento é sempre dinâmico, está sempre em movimento.

É neste sentido que se pode compreender o dizer egípcio descrito no livro “A ideia de uma filosofia africana”, de Marcien Towa, que assim ensina: consulte o sábio e o ignorante, porque os limites do saber não são jamais atingidos; nenhum sábio alcança a perfeição, porque a verdade está escondida como uma pedra preciosa.

Note-se como é interessante esta forma de pensar: tanto com o ignorante quanto com o sábio, sempre se consegue aprender alguma coisa, evoluindo com o novo conhecimento.

A partir deste ponto, parece caber a abordagem sobre assunto fundamental: a dignidade do ser humano, que é indiscutível na filosofia africana; tratar o humano como humano era a base de toda ordem jurídica egípcia; para exemplificar, segue uma lenda que aborda o tema.

Vejamos: havia, na corte de certo rei, um lendário mágico que tanto o aconselhava quanto entretinha; mas, certo dia, o rei descobre que ele diz poder unir-se a uma cabeça decepada.

Então, o rei o desafia e ordena a seu servo: “traz aquele condenado, decepa a cabeça dele, que eu quero ver se você pode, mesmo, se unir a ela, fazendo o que proclama”; mas recebe, como resposta meio indignada: “não, eu não posso fazer isso...!!!” Então, o rei volta atrás e determina: “´tá bom. Então, traz um coelho”, no que o desafio é aceito, e o mágico executa o que proclamava.

A moral deste conto é tão profunda, que traz várias nuances; a primeira, é sobre quanto é importante a vida humana: mesmo perante a ordem de um rei, a resposta do mágico é: “não, eu não posso fazer isso”, porque, para os egípcios, o ser humano, para além de viver, tem o direito de não servir como objeto de experimentação, nem da irresponsabilidade de ninguém; ninguém tem o direito de brincar com a vida alheia, sendo rei ou não.

Eis outra lição: além de estar vivo, o ser humano tem que ter qualidade de vida, pois o trato com o ser humano tem que se pautar pela responsabilidade; outro aspecto: o rei falou “traz o condenado”, sendo o condenado um marginalizado, um nada, um louco qualquer; mas, mesmo esta vida era importante.

Aí está a concepção de que todas as vidas, independentemente de classe social, de encontrar-se condenado ou não, são importantes.

Outro ponto: o rei cumpre a Lei de Maat, porque vê sabedoria em seu servo, que estava lá para entretê-lo; mas, se curva perante Maat, porque os representantes da ordem estatal também estão sob o império da lei: não estão fora disso, e também precisam cumprir a lei, mantendo responsabilidades sobre a vida alheia.

Para além, entende-se que seguir Maat consiste em fazer o que é certo, cuidando-se da vida humana integralmente, e que o que importa não é a caridade do milionário que doa, mas, sim, a caridade de fazer justiça, de entregar direito a cada um o que lhe é de direito, enquanto ser humano; aí está o significado de ubuntu[iv], palavra zulu que diz que o indivíduo só faz sentido se considerado coletivamente.

Eis a concepção original da filosofia africana: ideia de coletivo, de apreço ao conhecimento e à dignidade humana; eis a base que norteia o africano, para quem não faz sentido propriedade ou Estado nos termos da compreensão ocidental.

Não faz sentido nada disso se não estiver, no centro, a vida, o ser humano em sociedade, de onde a concepção “não basta estar vivo: é preciso ter qualidade de vida”.

Eis a gênese do direito que surgiu e ainda vigora na África tradicional.

[1] Advogada. Coordenadora da Câmara de Estudos Jurídicos do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – NUCAB – da Universidade de Sorocaba – UNISO.

[i] Note-se que a escrita mais antiga ou, pelo, uma das mais antigas, é egípcia: os hieróglifos; portanto, se os segredos e mistérios egípcios não foram escritos, não foi por desconhecimento da escrita mas, sim, por opção filosófica. [ii] Historiador nascido em 1907, professor e palestrante, branco, norte-americano de família metodista. [iii] Não parece haver disponibilidade em português. [iv] Simplificação do ditado zulu umuntu ngamuntu ngabantu, que significa, em tradução bastante livre: um ser humano só é humano enquanto compartilha em sua sociedade humana. Referências GARVEY, Marcus M. Procure por mim na tempestade. DVD. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yu6uaOKVfEs. Acesso em 22 mar.2019. JACKSON, John G.. Christianity before Christ. Austin, Texas: American Atheist Press, 2002. SOMÉ, Sobonfu. Espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. São Paulo: Odysseus, 2009. TOWA, Marcien. A ideia de uma filosofia negro-africana. São Paulo: Nandyala, 2015.

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